ALÉM DE ASA BRANCA

AS MULHERES FORTES E OS HOMENS FRACOS

70 milhões de brasileiros param todas as noites 
para assistir à vitória feminina sobre o machismo.

Bonitas, feiosas, exuberantes ou recatadas, elas fazem parte daquele bando de mulheres maravilhosas, musas determinadas que comandam a ação na novela Roque Santeiro. Com um jogo de cintura invejável, cavam espaços no mundo masculino de Asa Branca, levando os homens a reboque. É até engraçado pensar que Aguinaldo Silva, quando fez a primeira leitura dos capítulos escritos  por Dias Gomes, imaginou tratar-se de uma história machista. Sentiu a força das mulheres mas achou que elas não se livrariam do poder dos homens. Releu e viu que estava enganado, descobrindo as segundas intenções de Dias Gomes: mais impiedoso com a ala masculina, impossível.

- Dizem que é meu lado feminino despontando. Na época em que se fazia a apologia da bissexualidade andei pensando que eu era aleijado, brinca ele.

Não há nada mais errado do que classificar Roque Santeiro como uma história machista. Nem Gilberto Braga, mestre na criação de tipos femininos fortes, conseguiu radiografar o "machão brasileiro" com tanta dureza. Os 70 milhões de brasileiros que assistem diariamente à novela não se esquecem das cenas hilariantes do poderoso Sinhozinho Malta (Lima Duarte), rei da carne verde e de Asa Branca, transformando-se num cãozinho vira-latas no quarto da viúva Porcina (Regina Duarte). O galã Roberto Mathias (Fábio Junior) arrepiava-se até a espinha diante de Sinhozinho Malta e fugia da ex-mulher Marilda (Elizângela) como o diabo da cruz.

Nessa lista de bons poltrões ninguém supera Florindo Abelha (Ary Fontoura), o prefeito fracote de físico e caráter. Padece nas mãos das mulheres e dos homens. No outro dia, na vaquejada de Sinhozinho Malta, teve fricotes quando viu Amparito Hernandez (Nélia Paula), paixão do passado. Fugiu do encontro pulando a cerca, como um boi ladrão. Zé das Medalhas (Armando Bogus) é o machão em sua versão mais primária e Roque Santeiro (José Wilker) ameaça resistência à trama tecida pelos poderosos da cidade, mas continua compactuando com a mentira. Da grande mediocridade masculina só se salvam os padres, os homens de saia.

Roberto vive com a corda no pescoço
por causa de suas mulheres
Costumava-se dizer que os melhores personagens de Dias Gomes eram masculinos. E ele respondia: "Eu e Shakespeare. Otelo é muito melhor que Desdêmona e Hamlet que Ofélia. Acho essa avaliação equivocada". E lembra que, em 1964, escreveu O Santo Inquérito em que a personagem central era Branca Dias. A peça O Berço do Herói, feita em 1965, originou a novela Roque Santeiro com todas suas personagens femininas. "Posso acrescentar, ainda, Amor em Campo Minado em que,a principal personagem é Nara, criada por Ítala Nandi. Acho que sempre criei bons personagens femininos."

Mas Dias Gomes concorda não ter poupado os homens nessa novela. "Sinhozinho Malta é um personagem dúbio, extraordinariamente forte mas fraqueja diante de uma mulher. Na verdade eu não conheço um homem tão forte que não fraqueje diante de uma mulher. O que chama atenção é que eu desnudo o machão, faço uma radiografia." Aguinaldo Silva, encarregado de continuar a obra de Dias Gomes, não esconde que sempre teve um fraco pelos papéis femininos. "Até porque são elas, cheias de contradições, que tocam o mundo aí fora. Os homens estão muito perplexos, meio imobilizados."

Sinhozinho é o cachorrinho
da Viúva Porcina
- O que percebo na novela é o homem cheio de dúvidas. As mulheres estão mais preocupadas com os sentimentos e até se mostram simplórias. Mesmo com toda essa aparência de fragilidade, são mais fortes, diz a escritora Nelida Piñon. E completa: "a dúvida paralisou os homens. Mexidas por emoções, as mulheres caminham e traçam os rumos da história."

O exemplo perfeito, nesse caso, é o casal Lulu (Cássia Kiss) e Zé das Medalhas (Armando Bogus). "Ela está descobrindo tudo e ele fica parado, assustado com essa mudança. Pergunta-se "que mulher é essa?" Não adivinha e prefere achar que é o demônio." Os homens de Asa Branca, na sua opinião, simbolizam esse tipo de comportamento: "fazem de tudo para manter a mentira por medo de mudanças. Não querem caminhar, assustados com o novo." São essas mazelas que Aguinaldo Silva acredita estar exibindo na novela, "mazelas reais mas que raramente são expostas. O resultado é que as mulheres estão saindo privilegiadas".


Fernando Barbosa Lima, fã de Roque Santeiro, diz que a fórmula encontrada pelos autores para expor os mundos masculino e feminino é a mais acertada. Ainda mais numa novela que pretende retratar o Brasil. "A História do Brasil é de mulheres fortes e homens fracos que chegam ao poder exatamente por sua fraqueza. Na verdade, elas são sempre muito mais inteligentes porque pensam em felicidade enquanto os homens pensam em sucesso. E é isso que a novela expõe."

O psicanalista Hélio Pelegrino não tem tempo de ver Roque Santeiro. Mas garante: "se os personagens são machistas e fracos, a ficção imita a vida. Todo aparente machismo é uma defesa, às vezes, legítima, contra o excessivo poder da mulher".

Daqui para frente, o texto da novela será caridoso com o personagem central. Ele sairá do abrigo para lutar contra toda uma comunidade que prefere manter vivo o mito a encarar a realidade. Não há planos, pelo menos por enquanto, de recuperar a imagem de outros personagens masculinos. Em compensação, as mulheres fortes engrossarão suas fileiras com duas novas aliadas: Lulu e Mocinha vão explodir como vulcões. Viram dois mulheraços, para aumentar um pouco mais o espanto dos homens de Asa Branca.

Miriam Lage
27/9/1985
Jornal do Brasil